15 de julho de 2008

Esta mão sai hoje de cena. A outra ficará, se quiser. Esta sai.

14 de julho de 2008

sadness, picasso

De repente, tudo perdeu sentido. As palavras escritas e guardadas em rascunhos, à espera de vez. Os sonhos e as esperanças. O amor. As horas.
De repente a tristeza imensa, intensíssima vestida de vazio.

10 de julho de 2008

nem consta que soubesse de contabilidade

Virava-me e depois de me secar o suor, escrevia-me nas costas a contabilidade dos seus dias. Ia rasurando, cortando o que estava a mais, somando o que fazia falta, descendo na minha pele, até chegar ao saldo desejado. Porque é que o que se deseja passa a ficar tão longe?, perguntava-lhe eu. Dizia-me: Shiu, não me desconcentres. E continuava a contabilidade, o dever e o haver, os ajustes, os arredondamentos, os acertos finais. Até chegar ao saldo desejado.

8 de julho de 2008

saint-exupéry

- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu tornas-te eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela tua rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.

7 de julho de 2008

a alma dos outros

"O que é que a gente não faz por amor", canta Marisa Monte. Consigo vê-la, enquanto canta, as suas mãos, que também elas falam, a linguagem corporal.
O que é a gente não faz por amor? Vendemos a alma ao diabo, diriam alguns amigos meus, se soubessem. Dormimos com o inimigo, diriam outros.
No meu egoísmo penso, sem dizer nada a ninguém: e por nós, o que fazem por amor? Aquilo que é mais fácil ou aquilo que gostaríamos que fizessem?

conforme

Esta página abre e fecha com a sabedoria excelsa de Ricardo Reis, "Quer pouco; terás tudo. Quer nada; serás livre."
Com um encolher de ombros, breve, penso "This is as good as it gets", o melhor será usufruir enquanto existe, e de olhos fechados penso "Mais vale não esperar nada, não esperar a festa de celebração, de coração pleno, de despojamento, de entrega absoluta".
Não consigo querer nada, mas talvez consiga querer apenas não querer mais do que acreditar.

4 de julho de 2008

"câiguin"

Às vezes a minha amiga Flor surpreende-me. Não pelos fantásticos textos que aqui publica, obviamente, que esses devem merecer melhor espaço, suponho, mas pelas loirices que às vezes dispara.
Acerca de um jogo que instalei, uma demo com 60 minutos, disse-me que se não o queria comprar, tinha de sacar uma "câiguin".
E eu, espantadíssima com o seu vasto saber, perguntei, candidamente: "Uma câiguin?"
"Sim", respondeu-me, "para jogares sem limites."
"Uma câiguin é... um keygen?", perguntei com medo de resposta afirmativa.
"Então, não é assim que se lê?"
Às vezes não sei se ria se chore; se a beije na testa ou se lhe parta a cara.

3 de julho de 2008

armazém

Na segunda gaveta da mesa de cabeceira, as cuecas. Na terceira gaveta, os soutiens. Na primeira, cremes, desodorizantes, pílula, toalhetes, lenços de papel.
Em cima da cómoda, anéis, pulseiras. Na primeira gaveta da cómoda, relógios, brincos, colares.
Nas duas portas do roupeiro mais próximas, calças e blusas.
Tudo mesmo à mão, tudo aquilo de que preciso, que quero e uso diariamente.
Depois, nas mais distantes, nas gavetas do doutro lado da cama, nas gavetas mais baixas da cómoda, nas que ficam debaixo da cama, nas últimas portas do roupeiro, aquilo que raramente procuro.
Há ainda um outro roupeiro, noutro quarto, com coisas ainda mais esquecidas.
Depois há também os dias de reorganização, em que dou voltas à casa e acabo com 3 ou 4 grandes sacos de lixo.
Deixar à mão aquilo que queremos para todos os dias, afastar o que ainda se guarda porque pode ainda fazer falta ou porque ainda não chegou a hora de deitar fora, e sim, deitar fora o que já não se quer. Para não nos perdermos em dispensáveis. Para manter as coisas no seu lugar. Para umas não atrapalharem outras. Para umas não tirarem lugar a outras. Para que haja espaço para vivermos.
Fazemos isto em nossas casas.
Será assim tão difícil fazê-lo nas nossas memórias?

2 de julho de 2008

insustentável


1
Quando eu era pequena, teria 5 ou 6 anos, um homem já velho perguntou-me como me chamava. Envergonhada, de mão dada com a minha mãe, disse-lhe o meu nome baixinho. Não o percebeu bem. "Teresa?", perguntou. Não, não era Teresa.

2
Na adolescência conturbada que foi a minha, como a de tantos, li "A Insustentável Leveza do Ser". Também tentei ver o filme, mas saí da sala a meio por me ver tão perturbada pelas vidas de Tomas, de Sabina. De Teresa.

3
Quando, já mulher feita, me iniciei nos tentâmes da prosa, as minhas heroínas começavam invariavelmente por ter o nome de Teresa. Depois, quando os alterava para não me repetir, era como se me estivesse a enganar a mim mesma. Relia os textos, mas era sempre Teresa o nome que lia.
4
Um dia pensei ter percebido tudo. Nesse dia decidi reler "A Insustentável Leveza do Ser", a esta nova luz que é a da idade que tenho, e nesse dia pensei ter percebido tudo. Eu sou a Teresa. Não a do Kundera, mas a que gerou a do Kundera. A mesma que gerou as minhas heroínas. Um pedaço aqui, outro ali, junto-os e sou eu. A Teresa.

5
Os acasos. Para Tomas e Teresa foram quantos? Seis? Para que se cruzassem. Para que sim. Os acasos. “Pássaros poisados nos ombros.” Há quem diga que às vezes pesam. Para saber disso é preciso não se andar distraído. E depois, claro, não se andando distraído a gente dá pelos outros. E pelos sentimentos dos outros. A compaixão. Que nas línguas derivadas do latim significa que ninguém pode ficar indiferente ao sentimento de outrem.

6
É como se estivesse presa a Teresa. Como se me fosse mais fácil pegar em fotocópias e contar a vida a preto e branco, com sombreados.

7
Um dia pensei ter percebido tudo. Todas as mulheres poderiam ser a Teresa. Umas mais fortes, outras mais fracas. Umas mais submissas, outras mais inconformadas. Umas comandadas pelo intelecto, outras pela emoção. Outras vivendo dicotomias de dia sim dia não. Algumas nunca se apercebendo de que são a Teresa.

8
“O que é positivo: o peso ou a leveza?”Há quem tenha vivido a leveza de não ter ciúme, medo, insegurança e tenha sentido essa leveza como um peso incomportável. Há quem viva com os ombros carregados desses outros pássaros que são os que minam a auto-estima e não atravesse as portas que se lhe abrem para a fuga.

9
Há pássaros, desses geneticamente habituados a viver em gaiolas, que não fogem quando lhes surge a oportunidade. Também há pessoas assim.

10
Não me lembro da cara de Teresa. A do filme. Lembro-me do chapéu de côco de Sabina. Lembro-me de Tomas a olhar para o relógio enquanto se apressava em cima desta amante. Lembro-me de uma mulher, que era Teresa, andando pelas ruas enquanto fotografava os tanques soviéticos da invasão. Mas não me lembro da sua cara. Na minha memória surge uma mulher magra, de cabelos curtos e escuros e a sua cara é a minha.

11
Releio esta insustentável leveza e o grafismo ilude-me, ou eu a ele. O nome Sabina surge-me sempre como Sabrina. Como da primeira vez. Assim como leio Teresa no lugar dos outros nomes que foram a segunda escolha para as minhas heroínas.
Há coisas a que parece ser muito difícil fugir.

12
São muitas as relações em que estamos por metade enquanto o nosso pensamento está alheio, quase como Tomas em cima de Sabina, apressado.
Assim como quando vamos ao teatro. O que vemos são os actores, o palco, o que nos mostram. Por trás deles vive-se toda uma intensa corrida, uma espécie de murmúrio imperceptível, como nos quadros de Sabina.
Esse murmúrio é quem somos, a Teresa, a original. E os actores e o palco o esquisso do que gostaríamos de ser.

13
A primeira vez que se soube objecto de uma traição, desse saber que é conhecer factos mais do que senti-los, a mulher chamava-se Teresa.
Só se lembrou disso mais tarde.
Mais tarde, também, leu que a traição não é mais do que querer sair da fila e partir para o desconhecido.
Não acreditou.


14
Porque teria o velho ouvido Teresa quando lhe disse o meu nome?
Tenho-o repetido baixinho, o nome sussurado com voz de menina. Não é parecido.
Um acaso. Desses a que só damos importância quando nos faltam as coisas que dizem ser verdadeiramente importantes.

15
Quando me passeei pelas ruas de Praga era ainda nova demais para saber que Teresa estava em mim.
Era como se estivesse adormecida dentro do livro que se lera impunemente, na praia, irresponsavelmente.
Se há crime e castigo, esse foi o meu crime e sou agora castigada.

16
Agora sei porque não gosto das outras mulheres. Tenho medo delas. Todas elas são minhas rivais, mesmo que nenhuma de nós saiba com que rivaliza.
Um nome de mulher, apanhado assim do nada, cerra-me os lábios gelados de ciúme. Ou de inveja. Finalmente, de medo.
Também Teresa só crescia detrás da sua lente mágica ou de livro de lombada grossa nas mãos.
Também Teresa tinha medo.
Em tudo me imita. Mas dela não tenho medo. Somos demasiadamente íntimas para que pudesse temê-la.

17
Teresa ensinou-me umas coisas sobre o ressentimento. Aprendeu-as com Shakespeare, e passou-mas.
Eu, que mais nova pedia sonhos para viver ou veneno para morrer, agora tomo veneno não sabendo que afinal morro.

18
Neste ponto, suponho que se ouvir o nome Teresa na rua, me viro para responder à chamada.
Seja como fôr o nome que temos é apenas emprestado, nada diz de nós, apenas diz do gosto ou opções de quem o escolheu para nós.
Posso ser Teresa de nome, já que o sou de caminho. Tal como sou outro nome qualquer, tanto faz, o que somos não é o nome que temos.
Houve estes acasos, é certo; talvez alguém tivesse trocado as voltas ao meu destino (se o houvesse!) e não me escolhesse o nome de Teresa a ver se lhe fugia, mas não podemos fugir de quem somos. Somos a nossa casa e é sempre para lá que voltamos.

19
Por vezes apenas a laranja. Mecânica.
O chapéu.
"Ofereces-me um chapéu de côco no meu aniversário?"

20
Pobre Teresa. Que caminho ainda por percorrer. Também eu, quando pela primeira vez traí, vomitei. Depois, ao chegar a casa, toda a água foi pouca para lavar o corpo, a boca. A consciência, essa, não se lava com água. Mas isso foi da primeira vez. Depois já não custa tanto. E com o tempo aprendemos a silenciar a voz inoportuna da consciência com frases feitas como a de Sabina, “Traír é sair da fila e procurar o desconhecido”.

21
Também eu me olho ao espelho.
Nua, tento ver-me de todos os ângulos. Sou no corpo como sou na alma: um todo dividido, um uno falsificado.
O corpo: metade sensual, metade anacrónico; metade apelando ao olhar masculino, metade angustiantemente dispensável.
A alma: metade pragmática, metade sonhadora; metade exigindo cada coisa no seu lugar, metade perdendo-se em emoções desarrumadas.

22
Como é isso de aprender a leveza? Aprende-se? Em livros que nos dizem que a resposta está... em nós mesmos.
Muito obrigada.

23
Teresa não podia conseguir renunciar à força. Logo, não poderia amar.
Ou então amar também não tem a ver com isso.
Mas então tem a ver com quê?

24
Não temos senão como voltar ao lugar onde fomos felizes. O que nos acontece, por vezes, é perdermos-nos no caminho de volta. A imagem que guardamos do lugar onde fomos felizes é adulterada por inúmeros factores e, por vezes, pensamos ter voltado e não voltámos. Depois dizemos que não se deve voltar aos lugares onde fomos felizes. Então voltamos onde, quando não podemos seguir em frente nem ficar parados?

25
Se teimo em ler 'Sabrina' onde está escrito 'Sabina', se teimo em ler 'Teresa' onde estão os outros nomes das heroínas das minhas histórias, isso poderá querer dizer que vejo o que quero, como quero? Que pinto e moldo a realidade a meu jeito? Então porque faço as escolhas que faço? Porque não escolho uma realidade mais leve, sustentável e suportavelmente leve?

26
Perdi-me de Teresa quando me perdi de mim.
O chapéu permance no bengaleiro. Tem pó. Devia ser escovado. Como ela fazia, sentada naquela cadeira, a que fica mais perto da janela, de costas para a luz, sentada sobre as pernas cruzadas.

póstumo
Como se estivesse fadada, desde o dia 1 deste texto, ao mesmo fantasma. Um fantasma de carne e osso que teima em sorrir-me enquanto estica a perna que, já me disseram, se parece com a minha, a fazer-me tropeçar, esperando pelo momento em que caio, o momento da minha derrota que será a sua vitória por não poder ter outras.

longe da vista, perto do coração

O Rogério em S. Paulo. O Charles em Paris. O Richard em Langport. Todos distantes, porque é mais fácil assim. Com cada um palavras das que não troco com quase ninguém.
Agora, correndo o risco de melindrar os outros, vou ser justa e honesta. É com o Rogério que as palavras fluem. Talvez porque... Não, não sei porquê. Porque conhece "a mão destra das 2 mãos, a surda e a rosa erótica"?
Sempre me foi mais fácil falar com os homens. As conversas de mulheres são menos fáceis. Os homens julgam menos. Estes homens julgam menos. Ou não julgam, sequer. O Rogério não me julga. Não me cobra. Não espera. E essa liberdade não são todos que a têm.
A mim, é-me valiosíssima.
Por isso, quando falo com o Rogério, o mais próximo dos distantes, sou uma matraca que não se cala, que fala pelos cotovelos, pelos tornozelos, pelos nós dos dedos...
Ah, se não soubesse melhor, pedia desculpas pelas secas...

1 de julho de 2008

em montparnasse


Nem sequer se pode dizer que eu tenha algum tipo de relação com cemitérios. Dos que me morreram, a única pessoa que visito na campa é a minha avó paterna. Não só porque sinto a sua falta, porque também sinto a falta dos outros. Não só porque ainda tenho coisas para lhe dizer, porque também fiquei com muito para dizer aos outros. Talvez porque me está tão longe, e quando faço 200 km para ir à aldeia, não posso deixar de percorrer meia dúzia de passos a pé para lhe fazer uma visita.

Vem isto a propósito da minha curta visita a Paris e da visita a 2 cemitérios.

De mapa na mão, não podia deixar de me aproximar fisicamente de Éluard, de Balzac, de Sartre, de Baudelaire, se de outras formas tanto me aproximei.

Mas foi junto à campa da Duras que tudo aconteceu. Foi junto a essa campa modesta, semi-abandonada, dissimulada entre outras, sob um velho vaso de barro com flores secas, que tive um vislumbre de quem sou. Sou, indubitavelmente, aquela que em jovem já era velha. Aquela que amou contra todas as conveniências. Aquela que escreveu -tão aquém do seu mister- para não morrer de solidão ou de desespero. Aquela que fumou cigarros seguidos desafiando a morte, escrevendo na escuridão, desafiando a cegueira.

Um vislumbre apenas, e foi tanto.

Neste momento, neste momento preciso, sei quem sou, sei que me basto, sei o que quero, sei de onde venho. Sei estas coisas todas, não sabendo nenhuma. Porque fisicamente perto da Duras, depois de tanto a ter acompanhado, tive um vislumbre de quem sou.

E cresci, de repente, como se me tivesse morrido a mãe ou o pai.

E neste momento, neste momento preciso, não tenho medo, não tenho medos. E sei que é possível que por vezes a vida não seja madrasta, e sei que é possível sobreviver-lhe quando me dá a provar o veneno da sua maçã.

"Rumo às caraíbas, o mar estava calmo. Mas disso ainda não consigo falar."

30 de junho de 2008

honte de quoi?

Parece que há coisas em nós que envergonham os outros. A vergonha é uma coisa estranha. Não aquela vulgarmente chamade de timidez. Nem o embaraço. É mais do que isso.
Falo de quando fazemos coisas que envergonham quem se dá connosco. Lembro-me do bêbado do planeta que o Principezinho visitou, que bebia para esquecer que tinha vergonha de beber. A vergonha era sua, nascida de actos seus, nada temos a ver com isso.
Mas, e quando alguém nos diz que tem vergonha de nós? E se nos fôr alguém próximo? Se alguém de quem gostamos nos disser que tem vergonha de nós? E se nós acharmos isto profundamente injusto, egoísta e absurdo? Se soubermos que essa vergonha nasce de um preconceito e não pudermos fazer nada porque o preconceito não é nosso?

16 de junho de 2008

Paris, je t'aime :)

Esta semana não contem comigo, não estou cá. Ou melhor, estou fisicamente, mas a minha cabeça está nas nuvens. Nas nuvens que vou ver quando o avião as sobrevoar a caminho de... PARIS!!!!
Oui, bien-sûr, moi, je vais à Paris. Moi et mon pauvre français, nous allons à Paris!
A contagem agora é descrescente e aproveito as esperas ao telefone, aqui no escritório, para ir imprimindo dicas, à sucapa.
Entretanto, vou relembrando as aulas de francês, a ver se não me escapa o vocabulário essencial e os nomes de tudo o que tenho que visitar.
(Bonjour Nicole! Bonjour Robert! Bonjour Patapouf! Ah, como isto vai longe...)
Portanto, foi preciso chegar a esta provecta idade e ter uma filha que amará a Eurodisney para me decidir. Que pena não ter entretanto enriquecido para me poder embrenhar na cidade toda. Mas não faz mal, pelo menos vamos. A minha filha saltita de contentamento e eu só não o faço também porque era capaz de parecer mal. Mas estou em pulgas.
É a viagem, a cidade, a amiga que vou reencontrar, o mais-que-tudo que me vai beijar em Paris junto ao Sena (espero...), sou eu a perder um ano de idade com cada euro gasto nesta bendita viagem.
Ah, nunca mais é Samedi...

12 de junho de 2008

tango

Talvez eu tenha nascido na época errada. Nasci com certeza na época errada. Nasci numa época média, mediana, comedida, conformada.
E eu queria arrebatamento. Amor inteiro, entrega incondicional, vontade absoluta, paixão latina de fazer sobressair as veias, coração acelerado, tango.

com facas não se brinca

Um dia, mais ou menos à saída da adolescência, a minha prima, grande amiga, quase irmã, Maria Manuel ofereceu-me o Livro em Branco. Como quando se ama se põe um certo cuidado no que se faz, não se limitou a embrulhar o livro. Comprou aquele tecido para bordar, acho que se chama quadrilé, já não me lembro bem, apesar de tantas vezes ter ido com ela à baixa comprar metros disso para os seus fabulosos trabalhos manuais. Comprou então o quadrilé e bordou nele um ramo de flores amarelas, retirado de um esquema que ela sabia que eu gostava especialmente. Com esse quadrilé bordado forrou o livro e então sim, deu-mo, dizendo que era para eu escrever o meu livro, finalmente.
Mas um Livro em Branco intimida e eu decidi que nele não escreveria nada de meu. Então esse livro serviu para eu ir guardando frases, poemas, pensamentos, aquilo que ia encontrando escrito por outros, com que de alguma forma me identificava.
Entre tanta coisa, está por lá uma frase do Joaquim Pessoa que diz qualquer coisa como "Palavras, amigas que não partem; e ficando resistem à memória." E ontem lembrei-me dela. Pensei nas palavras. As que dizemos, as que ouvimos, as que não chegamos a ouvir, as que gravamos, as que escrevemos, as que não apagamos.
Porque há palavras que nos reconciliam com os dias e há outras que quase nos matam de dor. Porque há palavras que são guardadas e nós não percebemos porquê. Porque há palavras que deitamos fora porque sabemos que se forem realmente importantes hão-de permanecer na memória.
No final de tudo, aquilo que importa é a razão que nos move: porque escolhemos as que escolhemos? Porque guardamos as que guardamos? Porque as carregamos connosco? Porque evitamos algumas? Porque repetimos outras tantas? Como diferenciamos e relativizamos as que atiramos para o fundo de uma gaveta para só encontrarmos por acaso, das que carregamos connosco no telemóvel ou em papelinhos dobrados na carteira?
Como esquecemos palavras duras que teimam em ecoar-nos no cérebro? Como faremos para nos lembrarmos da formulação exacta daquelas que podem ter mudado a nossa vida?
As palavras são uma faca de dois gumes, e com facas não se brinca.

11 de junho de 2008

frase do dia roubada à sophia

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

6 de junho de 2008

Distimia

Se perguntarem, a maior parte das pessoas responderá que não, que não quer saber quando nem como morrerá. Porque há ausências de resposta que nos libertam, qualquer coisa ao bom estilo "olhos que não vêm, coração que não sente".
Foi mais ou menos isto que senti ontem quando o meu médico aprofundou o seu diagnóstico, após uma longa hora de conversa, após várias consultas, alguns anos de medicação e alguma terapia psicológica. Distimia, largou ele. E eu, desprevenida, apanhei com a desconhecida palavra em cheio na cara.
Depois ele explicou, e assim justificou que eu não devo pensar em parar com a medicação.
Eu sei como sou, sei como sempre fui, sei dos escapes que fui engendrando para ir fugindo de mim, sei dos lutos que fui deixando por fazer, sei das situações de que fugi, sei de tudo isso. Sei também da tristeza sem motivo aparente quando era criança, depois quando era adolescente, mas também sei de como fiz das tripas coração para fugir a esse quadro.
Agora ele diz-me isto, que não há fuga possível, que só há refúgios.
Deitada por terra, só pensei que preciso de um refúgio para fugir a este refúgio.
E pensei nos meus pais, para quem não tenho sido uma filha fácil, e nos meus amigos, para quem tenho sido uma amiga ausente, e nos homens de quem gostei, de quem sempre me afastei, e neste que amo agora, que tenho medo de perder para uma doença com nome feio. E na minha filha, que diz que vê nos meus olhos quando estou triste mesmo que lhe sorria.
Como é que se vive tendo medo de nós mesmos?

5 de junho de 2008

palavras para ti, chefe


"Quem meus filhos beija, minha boca adoça"

Podes até não beijá-la, nem adoçar a minha boca, mas pelo menos, não a faças chorar com o teu egocêntrismo.

4 de junho de 2008

desamizade 2

Os amigos que afinal não são amigos entristecem-me. Por isso confio tão pouco. Mas, mesmo confiando pouco, às vezes baixo as defesas e acredito quando me dizem "confia em mim, sou tua amiga".
Eu já andava desconfiada, que tenho esta espécie de dedo que pressente a confiança que posso ter nas pessoas, e hoje decidi experimentar. E entristeci-me. Ainda tinha a vaga esperança de ter resposta diferente, mas não.
E dia em que se perde um amigo, mesmo que seja dos mais pequenos e ausentes, é sempre dia de tristeza, não há volta a dar-lhe.

espelho meu

Todos os dias quando me levanto, a primeira coisa que faço é ir para a casa-de-banho, como uma zombie. Acho que nos primeiros minutos do dia não conheço outro caminho.
E todos os dias lá está o espelho refletindo-me mal abro a porta.
Não fora dar 7 anos de azar, já o tinha partido. Também com tanto azar, mais ano menos ano, não seria grande a diferença.
Mas por que raio falo eu do espelho? Porque o desgraçado, ano após ano, torna mais evidente que os cabelos brancos não desistem de crescer no meu couro cabeludo, e pior ainda, por vezes ficam espetados, como se atraíssem ao espelho para eu os ver melhor. O meu problema não está nas rugas nem nas olheiras, nem no envelhecer. Está no espelho que me parece gritar: PINTA O CABELO. E eu não quero e todos os dias me debato com este dilema. Já experimentei não me olhar ao espelho, mas os malditos cabelos, os brancos, parecem reproduzir-se e quando dístraida mexo na juba, lá tão os desgraçados. E até o pirralho da minha filha me diz: "mãe, tens que pintar o cabelo".
A minha hesitação baseia-se no receio de alterar algo mim, já que tudo é de origem. Não há cá silicone nem nada dessas cenas, é tudo natural. E sinto-me hesitante em mudar até a cor do cabelo. Sei que se o fizer, vou sentir necessidade de alterar outras coisas. E se me dá para diminuir as mamas, pôr piercings, tatuar-me, fazer alguma dieta maluca?
E se me dá para fazer madeixas azuis ou vermelhas?
Hum... Seria pior a emenda que o soneto.
Vou adiar mais algum tempo esta minha decisão, e não adianta reflectires-me todos os dias, ó estúpido. Eu posso ir envelhecendo e modificando-me, mas tu continuarás sempre espelho, igualinho.



desamizade

Tanto eu como a Flor trabalhamos com o Luís há 15 anos. Ele já cá estava havia 6 ou 7 anos quando chegámos. Esta já era a casa dele, a casa que contava mais do que a que partilhava com a mulher.
Tornámo-nos amigos. Trabalhei com ele no mesmo gabinete durante pouco mais de 1 ano, e depois mais alguns a acessorá-lo, no gabinete ao lado. Almoçávamos juntos, bebíamos juntos cerveja ao final do dia. Ligava-me à noite para partilhar o que o fazia feliz ou infeliz. Foi ao meu casamento. Ríamos e conversávamos longas horas, fechados no seu gabinete, enquanto trabalhávamos, lutámos pelos mesmos objectivos.
Depois ele mudou de funções e agora trabalha directamente com a Flor. Há um montão de anos. Também eles eram amigos, éramos os 3. Gosto do Luís como se gosta de um irmão. Por isso me dói o estado a que se deixou chegar. Por isso me dói que ele e a Flor mal se olhem. Porque ela adoeceu e ele não compreendeu as limitações a que se viu forçada. Porque também ele adoeceu e a doença não lhe permite ver além dele mesmo, nem ouvir, e hoje, ouvindo as mágoas desta minha amiga, surgiu-me a palavra certeira: Indiferença. O Luís tornou-se indiferente a todos. Mesmo a nós, suas apoiantes em tudo, certo ou errado, que faça. Tornou-se indiferente a problemas pessoais, a dias difíceis, a filhos, à mulher, a tudo o que não seja o seu trabalho. E mesmo aí tornou-se inflexível, culpando todos pela sua insatisfação.
Dói-me por ele e por ela. Dói-me quando chego à secção onde trabalham e sinto a tensão no ar e não consigo penetrar.
Às vezes, se fico um pouco mais no final do dia, ele chama-me a si e fala. E eu também falo, e parece que ele ouve. Mas no dia seguinte já se esqueceu, e tudo volta a esta normalidade cinzenta que não ajuda ninguém.
Muito menos aos dois, que tanto precisavam de contar um com o outro.

3 de junho de 2008

um recado para o céu

Ah, pois é! Por acaso pensava que se livrava de nós de qualquer maneira e que no céu estaria sossegado, sem aquelas tipas.
Agora que tem tempo para tudo, aposto que passa os dias debruçado cá para baixo, a deitar o olho para ver o que fazemos e o que dizemos, coçando o bigode de vez em quando e rindo trocista das nossas gaffes.
E até o imagino já perito em pc's, fazendo downloads, porque aí o tráfego é ilimitado e já não precisa de ir às escondidas espreitar o blog das meninas nem estragar o computador de ninguém.
Hoje vou encher dois balões e escrever-lhes: parabéns tonecas e fazes-nos muita falta. Não precisam de subir muito alto porque eu sei que deve estar à espera, para ver se esquecemos esta data ou não. E no céu, hoje deve ser uma festança, com direito a bailarico e tudo, pois onde você está, a alegria e a boa disposição não faltam. E aposto que já deve estar a ler estas palavras, debruçado sobre o monitor e a dizer "esta cabrona".
Eu não sei se quando as pessoas morrem vão para o céu ou não. Mas acredito que o seu espírito subiu a um lugar bonito, onde está sempre de olho em nós. Para mim é o céu, porque o merecia. E imagino-o sentado, recostado numa cadeira, pés esticados, com os painéis solares apoiados sobre a cana do nariz, a apreciar a vista cá para baixo. E a sorrir.
Este recado é para si, Pratas. Espero que o receba. Um beijo de parabéns.

lista de compras

Que diga: se não gostas, não volto a fazê-lo. E que peça desculpas por tê-lo feito. Que não boceje quando ela lhe conta o que sonhou. Que tenha medo de a perder e que o diga e demonstre. Que sinta ciúmes mas que goste de a ver passar bonita, na rua. Que a leve a ver o mar e lhe traga girassóis. Que não deixe escapar pormenores e que saiba contruir o puzzle. Que seja crítico, mas flexível. Que lhe grave uma canção para ela se lembrar dele. Que às vezes não faça perguntas mas que adivinhe as respostas. Que lhe diga com gentileza qual a roupa que não lhe fica bem. Que faça cedências. Que a sossegue em noites de insónia. Que lhe empreste um casaco leve nas noites frias de verão. Que fique feliz quando ela lhe dá o presente que não era o que ele queria. Que seja atencioso sem ser condescendente. Que saiba em que armário de casa dela estão os copos e os vá buscar. Que não aja só como acha que é correcto, mas que saiba o que para ela está certo fazer. Que não a compare com ex-namoradas. Que não deixe que se esqueça, nem por um segundo, de que é única, a única.
Há uns meses tinha feito esta lista de compras mas, como é meu hábito, não a publiquei. Ficou nos rascunhos à espera de melhores dias, que esses, dizem, sempre virão.
Ontem à noite, às volta com as minhas familiares insónias, lembrei-me dele. Lembrei-me que esta lista tem ficado pendurada como a da minha cozinha, aquela que vou fazendo á medida que as coisas vão acabando, mas que nunca me lembro de levar comigo quando vou ao supermercado. Aquela que se vai mantendo pendurada porque há sempre coisas em falta.
A questão talvez seja: esses items que vão ficando, serão eles indispensáveis? Ou serão apenas uma espécie de luxo, de conforto, de mimo? Algum destes items se pode equiparar à abóbora cristalizada que incluo na lista da cozinha? Eu posso viver sem abóbora cristalizada, mas vivo bem? Onde é que é razoável traçar a fronteira entre o necessário e o acessório? Como é que defino o acessório se para mim tudo acaba por ficar ao mesmo nível?

avestruz

Em boa verdade eu já deveria ter dito alguma coisa sobre a vitória da Manuela Ferreira Leite para a presidência do PSD. E sobre os cerca de 17 mil que ainda escolheram o Santana Lopes. E sobre a alegriazinha do nosso PM com este descalabro mal arrumado. Também sobre o Manuel Alegre em jantares com o Louçã.
Em boa verdade também deveria já ter dito o que sinto pela forma como são tratadas as vítimas das mais recentes catástrofes naturais e pelos seus governos. E sobre o renovado patriotismo dos meus conterrâneos agora que chega mais um europeu. Também já devia ter aberto a boca acerca da subida do preço dos combustíveis e acerca das crónicas do Mário Soares no DN.
Mas para factores que agravem estados depressivos já bem bastam os que gravitam em redor do meu belo umbigo.

2 de junho de 2008

Bon Jovi Live @ Rock in Rio Lisboa- You Give Love A Bad Name

Tá bem, não sou fã nem nunca fui. Mas a gente conhece as canções, quer queiramos, quer não, também crescemos com elas, e voltar a ouvi-las é rejuvenescermos umas duas dezenas de anos, e ele até é um frontman digno do título e assim, e às vezes é bom esvaziarmo-nos e deixarmos entrar alguma futilidadezinha, de tal modo que, de entre os vários concertos dos dois dias em que fomos, exceptuando o do João Gil no Sunset, este foi mesmo o mais envolvente.

E este ano portei-me tão bem :)

30 de maio de 2008

parabéns Fernanda

A Fernanda é uma amiga especial. Daquelas por quem nutrimos um carinho sem explicação, que não sendo a amiga de eleição, me deixa fragilizada e impossibilitada de não lhe deixar hoje aqui uma mensagem. Ela não sabe o que é a internet, desconhece o que é um blog, e nem lhe passa pela cabeça que um dia eu lhe deixasse aqui uma mensagem mais ou menos pública.Hoje completa 42 anos da sua complicada vida. Uma vida sofrida, chorada, por muitas razões.E é no momento em que desligo o telefone, depois de lhe desejar os parabéns, que penso que há sempre vidas mais complicadas e difíceis que a minha. É nestes momentos, que depois de escutar as suas lágrimas que tenho a certeza que não me tornei egoísta, por mais que a vida tenha sido dura comigo. Dói-me saber que alguém está realmente só e os seus soluços são um pedido de ajuda. Que não tem ninguém, que a sua vida é o que é e ponto final. Nem umas palavras que saiba escrever para descarregar a sua frustração, porque nem isso lhe foi permitido: aprender a escrever de forma a que alguém a escute. Bastou aprender a assinar e pouco mais.Hoje quero deixar-lhe um grande beijo. Eu sei que ela nunca o saberá. Mas que importa? Eu preocupo-me com esta mãe / avó e pude dizer-lho há poucos minutos.Parabéns, querida Fernanda. Acredito que a vida te trará, mais cedo ou mais tarde, pelo menos a paz. E os amigos (tu não acreditas) estão contigo, mesmo que não o digam. E apesar de tu pensares que não, eu estou contigo. Preocupo-me contigo. Sou tua amiga. E tenho, apesar de tudo, do que a vida me deu, um espaço no meu coração para ti. Um espaço muito especial. Sossega, amiga, a vida não se esqueceu de ti. Eu acredito. Acredita também.


eu não vou ao Rock in Rio

E então, qual é o mal de eu não ter pena de não ir?
A minha amiga daqui do blog começou por me dizer de manhã: tenho convite para ir ao Rock in Rio no Sábado. Preferia ir hoje, mas pronto.
Mas como há gentinha com muita sorte, às duas horas, dizia-me com um ar muuuuito chateado: olha, afinal, arranjaram-me convite para ir hoje também.
Logo à noite vai mandar-me uma mensagem com o seguinte conteúdo: eu não me apetecia, mas à última da hora, ofereceram-me um convite para Domingo.
A sorte dela é que eu não tenho pena de não ir, senão tinha que cagar um bilhetinho cá para este lado.

"o amor dá-me tesão"


















28 de maio de 2008

não escutem as conversas alheias

A varanda da minha cozinha é mesmo colada à dos meus vizinhos, de tal forma que facilmente passaria para a deles sem grandes problemas.
Nma daquelas noites que já pareciam de Verão, estava eu recostada na minha cadeira a arrefecer o corpo, perna esticada quando começo sem querer a ouvir uma conversa mesmo atrás de mim.
- recebeste o meu mail?
- recebi, mas não o li todo porque estava lá muito pessoal.
- olha que aquilo é confidencial.
- são estratégias de ataque, eu percebi. Mas são para o destacamento no Iraque?
Pronto, foi aí que a minha curiosidade cresceu repentinamente. Apaguei a luz da cozinha e encostei-me ainda mais à parede. Então o meu vizinho mais próximo é militar!
- as armas são transportadas nos camiões?
- são, mas tem que se ter cuidado com as emboscadas.
- aquilo tá minado de bombas e iraquianos, como é que eles se vão safar?
- tá tudo no mail.
- quando chegar a casa já vou estudar melhor isso. É que assim, já possa defenir uma estratégia e avançar no terreno.
Porra! - pensei eu. Estava a ouvir segredos de estado. A minha pele parecia a de uma galinha e sentia-me ruborizada com a emoção. Até evitava respirar e peguei no cão ao colo para ele não fazer um único ruído.
- não digas nada ao Rui, ouviste? Senão está tudo estragado.
- eu não sou chibo.
- quando acabar este jogo, já tenho outro para começar. Mas a Rita tá-me sempre a foder a cabeça que eu não largo os jogos desde que comprei a consola.
Eu não tenho tomates, mas acho que se os tivesse, tinham-me caído ao chão. Então aqueles gajos estavam a falar de jogos de playstation como os putos, como se se tratasse de um segredo de estado? E aqui a parva acreditou que esses assuntos se comentam baixinho numa varanda?
Dahhhhh! Cuidado com as conversas que possam ouvir.





27 de maio de 2008

da violência infantil

Vou chamar-lhe C. como podia chamá-la A. ou B.
Conheço C. desde os dois anos, pois frequentou até ao ano passado a mesma escola que a minha filha. Sempre foi uma menina triste, carente, isolada. E como as crianças são cruéis sem o saberem, muitas vezes era alvo do gozo dos outros pelas mais variadas razões.
Apesar de já não frequentar a mesma escola que a minha filha, mantêm muito contacto, pois mora perto de nós e passa muitos dias lá em casa, de manhã até à noite.
Ontem encontrei-a no supermercado e para além do habitual ar triste, as lágrimas teimavam em correr pelo seu rosto ainda criança. Perguntei-lhe o que se passava e as palavras atropelavam-se enquanto desabafou: a minha mãe tirou-me o telemóvel por eu ter partido 2 copos. E depois partiu o suporte do papel de cozinha para não mo partir em mim. E disse que se eu tivesse algum teste negativo, me espancava. As lágrimas corriam pelas suas faces ruborizadas, enquanto eu lhe passava a mão pelos longos cabelos castanhos e lhe dizia que hoje concerteza tudo correria melhor. Eu tive não satisfaz a Matemática. Agora ela vai-me bater e eu não quero ir para casa. Por favor, leve-me consigo para a sua casa. Tentei amainar o seu medo e o seu desespero, com a revolta a percorrer-me o corpo, sem perceber como se pode maltratar uma criança, como se lhe pode roubar os melhores anos, aqueles que devem ser os mais felizes, porque estão com os pais, e aí se deveriam sentir protegidos. Mas não, esta menina de 10 anos, cujos pais estão separados, que é maltratada por mãe, pai e padrasto, rematou a conversa, apercebendo-se que eu não a poderia levar comigo, dizendo: eu um dia fujo.
E vi-a afastar-se, lentamente, infeliz, depois de a beijar, de a tentar tranquilizar com palavras, nas quais eu sabia ela não acreditar, com uma raiva e uma revolta que só uma mãe pode sentir.
Das coisas que mais me chocam, a violência infantil é uma delas, porque se maltratam seres humanos indefesos, necessitados que alguém os ensine a crescer, que lhes mostre o caminho certo . E C., que não me saiu mais da cabeça ontem, é um desses pequenos seres humanos.



26 de maio de 2008

comentários

Dizem que em tempo de guerra e outras calamidades, diminui o número de suicídios. Isto deve-se, parece, ao facto de em dores colectivas tendermos a relegar as individuais para segundo plano.
Não é que isto tenha, aparentemente, muito a ver com o que quero dizer, mas quem me conhece já vem preparado, já sabe desta minha fantástica capacidade de andar à volta das questões, como cão atrás da cauda, sem ser capaz de chamar os bois pelos nomes.
(Nota-se, não é?)
Bem, tem estado bom de ver que não tenho andado nos meus melhores dias. O cinzentismo é tanto que até consegue toldar uns diazinhos que se roubam à rotina e que nos chegam cheios de mimos que nem sabemos se merecemos.
Adiante.
A Flor escreveu. Mas mais do que ter escrito, e mais ainda do que o que disse (desculpa lá, amiga, mas eu até já sabia, esforça-te lá por me dizeres qualquer coisa de novo), usou o tom que me transportou instantaneamente para um tempo mais feliz. Não a nível particular, e é daí que vem a tal referência do primeiro parágrafo, mas a um tempo em que conseguíamos fugir ao cinzentismo bastando-nos a nós mesmas.
Há quem me diga que o caminho passa pelo exorcismo, que é preciso escrever sobre a dor de alma até ela se esgotar. Há quem me diga que o caminho é outro, que passa por me alhear de mim para ver em meu redor.
Eu, que nunca tive muito jeito para seguir conselhos, acho que o caminho passa por fazer aquilo que me apetece e sei fazer. Por isso tenho andado por aqui a vomitar fel, a raspar crostas, a fazer todas as indecorosas coisas que só se devem fazer no recato do lar.
Mas este também é o meu lar.
E há coisas que contagiam, sim senhores, como por exemplo a Flor sair dela e escrever sobre o que a rodeia. Como dantes.
Há espaço para tudo, quando o espaço é nosso.

dos passos

Pronto, eu tenho que confessar uma coisa.
A minha colega de blog (e amiga) tem um defeito que às vezes me irrita. Agora já não sofro tanto com ele, mas mesmo assim ele manifesta-se a outros níveis.
A garina tem umas passadas enormes e quando íamos almoçar fora, enquanto ela andava, eu corria, ao ponto de uma vez cair de joelhos atrás de si.
Como se não bastasse isso, os tacões das suas botas ouvem-se no rés-do-chão, fazendo um barulho irritante. Nunca trabalhei em gabinetes por baixo do seu, felizmente, mas acordo da sesta quando ela se dirige para a nossa sala para ir almoçar.
E agora sofro com o seu ritmo porque, como já devem ter reparado, esta senhorita já publicou 121 textos, enquanto este é o meu 12º. Pronto, lá voltamos ao mesmo. Vou desatar a correr atrás dela, porque a esta passada, nunca mais a apanho. Vamos lá ver se não me espalho.


da felicidade dos outros

Para sermos felizes, não basta vivermos obcecados com a nossa própria felicidade, até porque, para mim, sentimo-nos felizes quando vemos que aqueles que nos são queridos emanam o brilho da serenidade, do bem estar. Se assim não fôr, corremos o risco de tocar o egoísmo.
A felicidade não é algo que possamos agarrar como uma folha que caí de uma árvore, é preciso lutar por ela, ultrapassar obstáculos, ponderar decisões e não olhar para o caminho que deixámos para trás para não corrermos o risco de nos arrependermos. É preciso chorar também. É preciso coragem. É preciso arriscar.
Os meus amigos não são muitos. Sempre fui muito reservada e cautelosa no que toca à amizade e por isso não tenho sofrido decepções nesse campo. Acho que é impossível ter-se muitos amigos. Amigos a quem podemos abrir a alma, a quem podemos dar um lugar no nosso coração, a quem nada pedimos, porque não é necessário. Eles estão sempre presentes, sabem ler e falar no silêncio.
Por isso, mesmo que não nos sintamos felizes, sorrimos por saber que essas pessoas estão bem, que a guerra da vida lhes deu tréguas. Por quanto tempo? Não interessa. Interessa que o sorriso voltou aos seus lábios e porque nos preocupamos com eles, também nós nos sentimos mais tranquilos. E sabemos que anseiam a nossa felicidade, que torcem por nós, e que mesmo nesses momentos, não nos esquecem. Assim são as minhas amizades.

21 de maio de 2008

Portishead - Roads

18 de maio de 2008

conjunto de letras

1. Que desígnios terão sido estes tão estranhos que me levaram a escolher os nomes que escolhi para as anti-heroínas das minhas histórias? Não foi o gosto especial pelo nome, não foi pelas pessoas que conheci que assim se chamavam.
Não pensei neles, sequer, vieram-me à pena, melhor dizer, às teclas, sem eu dar por isso. Mas que desígnios terão sido esses tão estranhos que me levaram a escolher Lídia, Laura, Teresa?
Estarei fadada a viver de exorcismos? Conseguirei alguma vez libertar-me do passado, dos passados, para poder seguir em frente? Como, se de um exorcismo nasce uma mágoa que terei mais tarde de exorcizar?
(Também é verdade que há essa, outra, em jeito epistolar, com outro nome, que atravessa o oceano para chegar ao brasileiro, mais um estranho desígnio?)
2. Às vezes levanto-me da cama e sei que sou capaz. Outras vezes duvido. Outras tenho a certeza que não.
Outras vezes não sei nada e saio de casa, mascarada com os meus cabelos mal pintados, as minhas botas de salto alto e o meu sorriso postiço, e sinto-me leve por não saber nada, por, por instantes, não ter memória.
Outras vezes não saio de casa e dou por mim a pensar que há palavras que nos ferem tanto que nos cortam a respiração. Cravam-se na pele, nas mãos, no peito; são escorpiões que despejam veneno.
3. E é quando não respiro que tudo me parece claro. Como se finalmente me libertasse. Como se esse fosse o meu caminho. Como se o óbvio fosse não respirar.

16 de maio de 2008

pistas

Quando alguém segue pistas para nos encontrar, sem que o chamemos, sem nada que o obrigue a fazê-lo, é como se nos estendesse um tapete vermelho para passarmos.
É como se nos dissesse: interesso-me por ti para lá do óbvio.
Evidentemente, isto é mais do que simpático.

laura, a que tem um diário da sua morte

A Laura é um todo. E nesse todo, caibo eu.
A Laura não existe. É personagem. Daquelas que eu crio para poder matar, vá-se lá saber porquê.
Porém, poucos dias depois de receber o texto, a um quarto da leitura, o meu amigo Rogério deu-lhe vida. Fê-lo colando-a à actriz que o atraíu, na peça de teatro que foi ver. Fê-lo colando-a à amiga especial que o acompanhava, os mesmo jeans, as mesmas curvas cobiçadas. Deu-lhe vida, a ela que morre no decorrer nas páginas, adivinhando-lhe a sensualidade e torcendo por ela quando percebe do seu interesse pelo baterista do prédio em frente.
Eu matei-a porque é assim que sei fazer. Mas alguém que não sabe que ela morreu para eu poder continuar viva, descobriu-lhe a feminilidade que ela renega. Alguém que não conhece os seus cabelos vermelhos ficou a desejar que ela viva para além da existência.
Ao fazê-lo (e ao tirar tempo do seu para a conhecer), o Rogério deu sentido ao que se ia assemelhando a uma marionette.
E eu, que quando dou esses pedaços de mim a alguém fico despida, desta vez recebi em troca uma manta, dessas muito velhas que não trocamos por outras, onde nos enrolamos no sofá, à noite, ou na praia, nas noites frias de verão.
Ao fazê-lo, o Rogério desmente a gaivota da história, com a sua irritante mania de que sabe tudo.
Eu, que deixei de contar nesta história, fico de lado, sorridente, comprazida, quase a achar que não são só as paredes que me ouvem.

15 de maio de 2008

bingo! ("what movie is your love life)

Your Love Life is Like Annie Hall
"A relationship, I think, is like a shark. You know? It has to constantly move forward or it dies."

You believe that love (if you even believe in love!) is a very complicated thing.
Maybe love is pain. Or maybe it's all a big therapy session. You're still figuring it out.

Your love style: Brainy and a bit neurotic

Your Hollywood Ending Will Be: Realistic and reflective
What'>http://www.blogthings.com/whatmovieisyourlovelifelikequiz/">What Movie Is Your Love Life Like?

schiu

Isto dos segredos tem muito que se lhe diga.
Os nossos segredos são fáceis de guardar, porque são nossos e deles nos podemos envergonhar ou temer que nos julguem se eles vierem a ser do conhecimento de outros. Agora os segredos dos outros... nem todos os sabem guardar.
Há quem fique com um formigueiro quando alguém lhe diz "eu vou dizer-te uma coisa, mas não contes a ninguém", ansiando mais uma coscuvilhice, que parece queimar como uma brasa, enquanto não se diz a outra pessoa.
Na parte que me toca, tenho alguns segredos, alguns guardados a sete chaves, outros partilhados, mas com muito cuidado. Quando me pedem para guardar um segredo, não fico por demais curiosa, fico sim com o peso da responsabilidade de guardar o pedaço de outra pessoa, sim, porque os segredos são pedaços de nós. Por isso, quando mos confiam, opto por guardá-los num envelope dos que tenho no meu coração e selo-os com o lacre do meu silêncio. Guardo-os todos na mesma gaveta, trancada a sete chaves.
Pedirem-me para guardar um segredo é sinónimo de confiança.
E quando se trata de confiança, meus amigos, eu não consigo quebrá-la.

marcar a ferro

Eu cá tenho um piercing. Unzinho só. E sei que se o tirar, o buraquinho, mais cedo ou mais tarde, acaba por fechar. Também ando há anos a tentar decidir que tatuagem hei-de fazer. Não escolho nenhuma que é para não ter de a fazer. É que os buraquinhos fecham, mas as tintas já é pior para saírem. De resto, o quê? Ah, tenho uma cicatriz no pé. Mái nada. Nem costurinha de cesariana, nem de apendicite, nada. Por isso, um destes dias, se a vida der para o torto e eu tiver que fugir, não me hão-de reconhecer por marcas no corpo.
O piercing foi pura vaidade. Bem, pura, não. Teve um misto de vontade de permanecer jovenzinha à medida que os anos avançavam. E às vezes também me dá para, na mesma linha de pensamento, escolher cores inenarráveis para pintar as unhas, mas pelo menos não faço desenhinhos. De resto, acho que sou discreta. Bem, às vezes os anéis... mas os anéis a gente tira em qualquer momento.
Já me é mais difícil de perceber a piada dos piercings nas unhas e nos dentes.
Andaremos todos tão desprovidos, despojados, despejados de valores, referências e propósitos que só nos resta embonecarmo-nos?
Ai, que medo do avenir!!

14 de maio de 2008

desculpa Mari

Pensei que aprendera a aceitar cada um como é, com as suas diferenças, com a sua personalidade. Não pensei que um dia chegasse a ser egoísta ao ponto de querer moldar os outros e até desejar que fossem à minha medida, de forma a não me darem luta e me deixarem estar quieta no meu canto. E não pensei que um dia pudesse descarregar nos mais fracos a revolta que por vezes me invade. Cobardia. Eu sei que o devia fazer com aqueles que me destabilizam, que me obrigam a percorrer os dias como se atravessasse uma corda bamba. E não pensei que o pudesse fazer à minha filha.
A vida ofereceu-me o maior presente que uma mulher pode receber: uma filha. Sonhei-a muito. Embalei-a nos meus braços e amparei-a nos primeiros passos, prometendo que o faria pelo resto dos nossos dias, que estaria sempre presente e que a minha mão lhe amorteceria as quedas.
Ontem gritei e disse-lhe coisas das quais à noite, sózinha, me arrependi. Não tenho o direito de a repreender por ser como é, e de querer que seja diferente, que vista saias rodadas, que use ganchos, que seja apenas uma menina porque ela é muito mais do que isso. É ela que me tem dado a mão para que eu não me desvie do caminho. É ela que não me tem faltado nem falhado. E tem sempre um beijo e um sorriso para me oferecer.
Ontem quando a abracei, já na cama, disse-lhe baixinho: desculpa, amor. Ela sorriu.
Desculpa, Mari.




teias de aranha

Um destes dias, quase a pedido, deu-me para desenterrar ficheiros no computador. Cartas de amor, desenhos de amor, promessas, despedidas. Poemas de adolescência. Outros poemas. Páginas que não chegaram a levar a nada. Textos de outros.

No computador, como nas gavetas, como na memória acumulamos pó.

13 de maio de 2008

ao engano

Durante um tempo, achava que a culpa devia ser minha. Que dava sinais errados. Que sorria demais. Que inclinava demais o tronco. Que falava demais, também. Os dissabores sucediam-se. Comecei a não perdoar aos amigos que me liam mal, não tolero amizade com flirt, se não for consensual.
Voltei para casa algumas vezes absolutamente confusa: em que momento dei a entender que determinado gesto poderia ser aceite? Quando foi que dei a entender que aquela mão ou aquela boca se podiam estender para mim, daquele modo?

Até que percebi. Não sou eu.

12 de maio de 2008

défice



Uma pessoa pode amar outra. Mas se não prescinde, nem cede para o fazer, de que vale esse amor?

9 de maio de 2008

sei de um rio

Não me lembro da última vez que um fado me arrebatou. Até ouvir este.

E de repente até um homem absolutamente banal se veste da mais profunda sensualidade. E de repente o meu leitor de mp3 esvaziou-se de rock e rendeu-se ao fado. E de repente ouço este fado em loop. E de repente, "não mais que de repente", a voz encorpada que canta este fado é o casaco que me aquece quando de manhã atravesso o rio de que também eu sei.



balança

Os textos de tom menos pesado, menos agustiado, são os mais relutantes. Têm de ser escritos imediatamente. E se fôr no blog, publicados imediatamente. Não é possível publicar um post feliz num dia infeliz, apesar da sua genuinidade. E não é possível escrever um texto de memória feliz em dia de sombra.
A desigualdade verifica-se ainda na necessidade de escrever uns e outros; os felizes não ficam a fervilhar nos dedos se não forem escritos. Se calhar porque a felicidade é para viver e não para deixar testemunho. Se calhar porque as angústias precisam de exorcismos.
Se calhar porque sou esta mulher e não outra.

8 de maio de 2008

Graça

Ontem, nem sei a que propósito, já deitada, lembrei-me da Graça, a minha amiga morta há tão poucos meses que ainda não me parece verdade.
Lembrei-me que quando a conheci ela devia ter a idade que tenho agora, tínhamos 19 anos de diferença e conhecemo-nos há 18 ou 19.
Fiquei surpreendida, de alguma forma. Lembro-me dela sempre da mesma forma. O cabelo com caracóis negros, desalinhados, as saias justas, as pernas finas, os saltos altos, a voz forte, o riso possante, a presença afirmada. O filho mais novo da Graça deveria, portanto, ser mais novo do que a minha filha é agora, mas também me parece que tiveram sempre a mesma idade.
Conheci-a quando fui trabalhar para a empresa onde ela punha e dispunha. Almoçámos juntas nesse primeiro dia, também com o Trindade e a Maria Manuel. Ao almoço a Graça disse, referindo-se a ter filhos ou filhas "Quem tiver éguas que as prenda, que os meus cavalos andam à solta." Fiquei quase chocada. Como podia uma mulher falar assim, pensar assim? Mas eu não conhecia a Graça, não sabia que ela mostrava esta carapaça dura, resistente, enquanto por dentro era de uma fragilidade assustadora.
Nessa altura a Graça ia a Ceuta aos fins de semana e contrabandeava casacos de cabedal, colchas e toalhas de mesa. Mais tarde abriu uma loja no nosso Alentejo e eu ia com elas, às vezes, na sexta à noite passar o fim de semana ao monte que lá tinha. Parecíamos duas miudas, cúmplices, alegres. Parávamos um pouco antes de chegar ao monte, para comprar pão. Esperávamos que o tirassem do forno e depois sentávamo-nos à mesa a comer pão com queijo de Serpa ou com chouriço, a beber vinho branco e às vezes não nos chegávamos a deitar.
Às vezes a Vanda e a Maria Manuel também iam. Então a Graça e a Maria Manuel levantavam-se cedo para ir ao Pomarão ver o Guadiana e eu e a Vanda só nos levantávamos quando voltavam, quebradas ainda, nós as mais novas, por termos ficado a jogar Trivial até de madrugada.
Depois, eu e ela íamos de férias juntas para o Algarve, com os respectivos companheiros. Cabanas, Lagos... Ela obrigava-me a comer fruta e peixe fresco. Eu defendia-a subrepticiamente doa ataques do Vítor, apanhávamos sol, fazíamos compras, tomávamos o pequeno almoço no terraço, ao sol da manhã, trocávamos confidências como fazem as adolescentes.
A última vez que nos juntámos todas, as quatro, foi no velório da Graça. Rimos porque o Vítor, marido da Graça desde os seus 19 anos, lhe levou uns ténis como última coisa que calçaria para ser sepultada. Toda a gente sabe que a Graça só calça saltos altos, mesmo morta. Mas o Vítor andava perdido, foram longuíssimos os meses em que a Graça lutou para se manter viva, e ele nunca saíu da sua cabeceira, estava desgastado.
Também rimos recordando-a de outras formas, todas as formas da Graça. Tínhamos um almoço marcado, as quatro, para quando a Graça saísse do hospital. Foi ela quem escolheu o sítio. Nós dissémos que sim, apenas a Vanda vendo as coisas como são e não acreditando já na sua recuperação. Tinha razão, 2 semanas depois a Graça morria. Agora já não é almoço, é jantar. E somos só três. E temo-lo vindo a adiar, nem sei bem qual de nós, talvez eu, que fiquei de marcar tudo e não há meio de o fazer.
Nunca mais falei com o Vítor. Nem com a mãe da Graça, nem com os seus filhos. Falta-me a coragem.
E falta-me a Graça.

a mentira



É isto que a mentira tem. A responsabilidade. Os danos que causa. O que faz perder quando é tanto o que está em causa. O ataque à fragilidade que é a nossa vida.

Tenho medo da mentira. Tenho-lhe um medo absoluto, visceral, epidérmico. Vejo-a espreitar, por vezes, e tento ignorá-la, a ver se lhe minoro o poder. Mas ela é.

7 de maio de 2008

[sem assunto]

Acepipes, galhardetes, lamechas e cusquice. São estas as palavras que o Rogério classificou como novas/antigas. Obviamente temos de levar em conta as diferenças entre o português de cá e o de lá, do outro lado do mar.
Na verdade, habituamo-nos a ficar limitados sempre ao mesmo e não inovamos, não surpreendemos. Casamos com as palavras como casamos uns com os outros, prontos a ceder à rotina, ao hábito, ao institucional.
Hoje aprendi uma palavra em alemão e passei o dia a tentar encaixá-la em tudo o que dizia. Dêem-me um desconto, hoje foi um dia difícil no trabalho, tinha de arranjar um escape. Assim, para não me passar de vez, hoje andei mais desenfiada do que é hábito e a Florbela até chorou a rir com o que lhe disse, e isso soube-me bem.
E os mais próximos, desesperados como eu, optaram pela mesma via, e no meio do descalabro que hoje nos surpreendeu, soubémos rir dos caminhos errados, como se assim afugentássemos o medo de não dar a volta a mais esta situação.
Sim, eu sei, este texto devia ser imediatamente apagado, tal a sua falta de estrutura, mas este é mais um escape.
Mais uma hora e saio daqui.

marco do correio - carta terceira

(carta a uma morta em vida)

Quando eras pequena a tua irmã chamava-te morcego.

Fechavas-te no quarto a ler livros tirados da estante dos teus pais, corrias os estores e lias à média-luz.
Ouvias música clássica.
Rejeitavas tudo o que as outras crianças elegiam.
Começaste a escrever poesia e mostravas-ma. Eu duvidava da autoria dos poemas por serem demasiado adultos e pesados.
Mais tarde, quando pudeste escolher a tua roupa, vestias-te de preto.
Tinhas olheiras que não disfarçavas.
À primeira desilusão amorosa, o teu pai disse-te que começavas cedo demais, que assim terias muito que chorar durante toda a vida. Não se enganou.
Mais tarde ainda, a psicóloga que te acompanhava insistia para que fizesses os lutos que foste acumulando e que te impediam o sorriso. Em vez do luto, levantaste a cabeça e seguiste confiante de que não precisavas de os fazer.
Já vestias cores claras e já abrias as janelas, mas era tarde.
Morreste triste e com toda a vida por viver.
Que tenhas agora a paz que não encontraste.


2 de maio de 2008

15 anos

Faz hoje 15 anos que aqui trabalho, quase todos nesta cadeira, nesta sala, que promoções houve só uma e a partir daqui já não há mais para onde ir.

Há 15 anos nem me passava pela cabeça pensar a longo prazo, não sabia e não me preocupava em saber se iria ficar muito tempo, se esta casa iria acompanhar o meu casamento, o nascimento da minha filha, o meu divórcio, o meu renascimento. Não sabia nem me preocupava em saber se iria aqui fazer amigos, se iria chorar a morte de alguns. Nem se iria ter pela frente desafios de tirar noites de sono, elogios de tirar a respiração, fretes de ir ao vómito. Não sabia que haveria de ir ficando, mesmo quando outras portas se abriam e eu até queria mudar, mas ficava por uma espécie de amor a uma camisola que nunca soube muito bem se efectivamente me servia.

Eu era outra quando aqui entrei, primeiro para as entrevistas, depois para começar a trabalhar. Era outra que em nada se parece com esta que sou hoje. Esta que sou hoje já pensa: "Quantos mais? Quantos mais posso ficar?" Esta que sou hoje já é mulher, cansa-se e entusiasma-se, preocupa-se e rejubila quando resolve, quer ficar mas não quer.

Fique o tempo que ficar, daqui levarei ensinamentos vários, histórias de contar e outras de calar, desapontamentos e surpresas, um quase amor-ódio de que ninguém se apercebe.

Quanto ao que deixarei... terá sido uma espécie de metamorfose, um barulho de risos e de saltos altos nos corredores, de discussões com voz nervosa, alguns sonhos desfeitos, muita desilusão e a memória de me levantar do chão a cada dia.

30 de abril de 2008

o grande sedutor

Já disse aqui que o meu amigo Rogério dedica uma parte do seu tempo a ser "aquele" amigo. Fá-lo com charme, com sabedoria, com ternura, com entrega. Já lhe perguntei se devo agradecer tamanha disponibilidade, não sei se estas coisas se agradecem.
O Rogério lamenta não ser capaz de boas parábolas, tal monge budista, daquelas que a gente copia para um caderno ou escreve como mensagem de boas vindas no telemóvel, ou como fundo de écran no computador, daquelas que resumem todo um pensamento ou até uma solução.
No entanto, disse-me uma frase cheia de saber, provavelmente uma frase que eu não esperaria ouvir de um homem, que entre eles e nós, as diferenças vão além de saber quem carrega as malas ou de quem dispõe as flores na jarra.
Disse-me "O grande sedutor deve ser aquele que se antecipa e distribui, preventivamente, provas de amor." Não sei se ele sabe, mas esta é mesmo uma solução. Porque há coisas que, independentemente do seu valor intrínseco, perdem ou ganham mais dependendo de virem a pedido ou por iniciativa própria.
E este terreno, o das provas de amor, é cheio de armadilhas, temos que trilhá-lo com pézinhos de lã.

o trigo e o joio

Nem todas as pessoas que se dizem nossas amigas o são, de facto. Isto toda a gente sabe, até a minha filha, que eu já lhe ensinei. Mas estes ensinamentos não passam de teoria, também toda a gente sabe.
Dos amigos que se dizem amigos, a gente espera sinceridade, franqueza, ora bolas!, amizade, não é? A gente não espera que nos indiquem caminhos que tanto eles como nós sabemos que não são os que nos levam onde queremos ir. A gente não espera que tenham inveja nem ciúmes de nós. E que esses sentimentos os façam ser falsos por detrás do sorriso.
Dos amigos esperamos que sejam despojados de interesse, ou que o interesse deles não interfira com o nosso, de tal modo que nenhum se concretizará.
Esperamos que quando nos perguntam como estamos, não seja para comprovar outras respostas, que as perguntas não tenham rasteira, que não queiram saber o que nos magoa para aproveitar e espetar aí mais uma farpa.
Mas nem todas as pessoas que se dizem nossas amigas o são, de facto. Repito, nem todas as pessoas que se dizem nossas amigas o são, de facto. Pelo que a responsabilidade primeira é nossa.

cartas portuguesas

(...) Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada. (...)

Soror Mariana Alcoforado

Eu tinha menos de 20 anos, isso é certo, talvez 17, já não importa. De livro na mão deitei-me, noite cerrada. A luz era fraca, mas eu lia sempre assim, já não me fazia diferença.
Acho que são 5 as cartas. Num crescendo de dor e desespero. De quem sentiu para poder escrever e, mais tarde, de quem leu, de mim também.
Na última carta já a dificuldade era imensa para conseguir perceber as letras. As lágrimas pareciam rios. Rios no inverno, não como o Guadiana, vizinho de Soror Mariana, no verão.
Chorei por ela, com ela, por mim. Convulsivamente. Empenhada em abafar os sons desse choro descontrolado para não acordar os meus pais, no quarto ao lado.
Foi esse o meu choro mais profundo, o mais sofrido, o mais liberto e o mais libertador. Não voltei a chorar assim.
(Neste, meu amigo, não senti a dormência nos dedos, a do orgasmo, lembras-te?)
Não voltei a relê-las. Não de um fôlego, quem seria capaz?
Hoje, quando a caminho da aldeia faço um desvio e passo junto à casa Alcoforado, mais do que quando passo no museu e olho a janela por onde Mariana via passar o seu cavaleiro de Chamilly, fico constrangida. Sonho com um bafejo de sorte que me permitisse comprar aquela casa, mesmo sabendo que não sou merecedora dela. Não mais do que o cavaleiro foi merecedor do amor de Mariana.
Será natural às mulheres alentejanas amarem assim? Não foi a Florbela Espanca (Mas que me importa a mim que me não queiras, Se esta pena, esta dor, estas canseiras, Este mísero pungir, árduo e profundo, Do teu frio desamor, dos teus desdéns, É, na vida, o mais alto dos meus bens?É tudo quanto eu tenho neste mundo?) a sua mais soturna prova? Não somos ainda muitas de nós seu testemunho?

nuances

Estar em alguém não é o mesmo que estar com alguém. Assim como saber boiar não é saber nadar. E amar não é ser amado. E estar feliz não é ser feliz. E querer não é poder.

29 de abril de 2008

idiossincrasias

- Estás chateada?
- Não...
- Mas estás com cara disso.
- Mas não estou.
- Então, o que se passa?
- Nada...
- Disse alguma coisa que não devia?
- Não...
- Fiz alguma coisa que não devia?
- Não...
- Devia ter dito ou feito alguma coisa que não fiz ou não disse?

Mas porque é que os homens em vez de perguntarem se estamos chateadas, ou tristes, ou zangadas, ou magoadas, ou simplesmente melindradas, não páram para pensar um bocadinho no que fazem, no que dizem, no que não fazem e deviam fazer e no que não dizem e deviam dizer? Temos de explicar tudo?
(pois, eu sei, um homem responderia: "Mas porque é que as mulheres não dizem logo de uma vez, sem que a gente tenha sequer que perguntar, o que raio as chateia?" Mas isso não teria sal nenhum, pois não?)

gramatical-mente

No princípio era o verbo, o verbo eu-não-sou-daqui-estou-só-a-ver-passar-comboios.
Depois continuou a ser o verbo, o verbo deixa-lá-ver-o-que-isto-vai-dar.
Depois outro ainda, o verbo espera-lá-onde-é-que-me-estou-a-meter.
Depois outro verbo, o verbo isto-não-estava-nos-meus-planos.
A seguir ainda outro para conjugar, o verbo eu-sabia-lá-se-foi-o-sossego.
Depois o verbo apanhada-na-curva-da-insegurança-rodoviária.
Mais uns dias e o verbo malditas-insónias-malditos-sonhos-malditas-dúvidas-maldito-éter-em-que-me-movo.
Para atrapalhar mais ainda, chegou o verbo dias-tão-absolutamente-felizes-não-deviam-ser-seguidos-por-atitudes-nem-palavras-nem-planos-desajustados.
Felizmente a seguir virá o acordo. Ortográfico, obviamente.

o gato da alice



(não sei onde raio ouvi isto, mas tem o seu quê, tanto quanto as toneladas de frases feitas que por aí circulam)

"O importante na imagem é como ficas; não quem está ao teu lado nem o pano de fundo. O que importa é se estás a sorrir."

28 de abril de 2008

terapias

Não sei até que ponto posso tomar como certo o que me disse a Débora, a minha psicóloga, na medida em que nem a ela me expus completamente.
Mas disse-me algumas coisas que posso juntar àquelas que colecciono para me condicionarem. Disse-me que as minhas relações emocionais têm um prazo de 3 anos. Tem batido certo, apesar de ela me dizer que isto se deve ao facto de a minha mãe ter voltado a trabalhar quando eu tinha essa idade, o que eu acho uma perfeita treta. Gostava de um dia saber contrariar este prazo, de poder mostrar a mim mesma que sei ficar numa relação, se bem que à medida que envelheço, apuro os meus defeitos e mais difícil será que isto aconteça. Sei como teria que agir o homem que me quisesse consigo, mas não lho poderia dizer, isso faz parte do que espero dele.
Também me disse, a Débora, que eu quero a alma dos outros. Cheguei a ficar aborrecida com ela, por isso. Também cheguei a divertir-me. Finalmente penso nisso a sério. E penso naquele exercício que fazíamos nas aulas de teatro, com o Rogério de Carvalho. Alguém se colocava a meio da sala. Eu encostada a uma das paredes. Depois eu tinha que correr, de olhos fechados, na direcção dessa pessoa que me seguraria. Essa pessoa, porém, quando eu fechava os olhos, recuava para o outro extremo da sala. Eu tinha medido a distância, claro. E a meio da sala abrandava à espera que me segurassem. Abria os olhos, a pessoa estava ainda distante, mas de braços estendidos para mim. Eu tinha que repetir o exercício. Já sabia da rasteira, mas mesmo assim era-me impossível confiar. Precisava que me apanhassem antes, mas essa não era a regra do jogo.
Era isso provavelmente o que a Débora queria dizer. Que eu precisava que me tirassem todas as dúvidas, todos os receios, repetidamente, com vontade, com provas, para que não recuasse antes do tempo. Que as regras se alterassem, que se adaptassem às minha necessidades, às minhas inseguranças.
Se calhar, querer a alma dos outros, passa por isto.

27 de abril de 2008

o homem que estendia roupa olhando o rio

Eu não morava ali, mas era como se morasse, que às vezes a gente sente que a nossa casa é olhar uma pessoa.
Nas tardes quentes gostava de o ver, alheio às pessoas, por momentos apenas o rio, a ponte, os telhados das outras casas.

De longe via-lhe os olhos escuros e densos. As mãos que prendiam a roupa com molas de plástico. Seriam mãos de afago? Seriam olhos capazes de dizer amor ou paixão?

A corda da roupa não gemia e eu ouvia apenas os pássaros nas nespereiras, em baixo, e uma espécie de queixume que me chegava da ponte. Ou então, não ouvia nada e apenas imaginava. Como imaginava o homem a enlaçar uma mulher de quem gostasse, a encostá-la à varanda quente, a sussurar-lhe que gostava de a ter ali.

Às vezes há momentos quase perfeitos.


A última elegia (V)


O L
O F E S
R S H E
O OFC A

Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!
Ó imortal landscape
no anticlímax da aurora!
ô joy for ever!
Na hora da nossa morte et nunc et semper
Na minha vida em lágrimas!
uer ar iú
Ó fenesuites, calmo atlas do fog
Impassévido devorador das esterlúridas?
Darling, darkling I listen...
"... it is, my soul, it is
Her gracious self..."
murmura adormecida
É meu nome!...
sou eu, sou eu, Nabucodonosor!
Motionless I climb
the wa

t

e

r

Am I
a Spider?
Am I
a Mirror?
Am I s
an X Ray?
No, I'm the Three Musketeers
rolled in a Romeo.
Vírus
Da alta e irreal paixão subindo as veias
Com que chegar ao coração da amiga.
Alas, celua
Me iluminou, celua me iludiu cantando
The songs of Los; e agora
meus passos
são gatos
Comendo o tempo em tuas cornijas
Em lúridas, muito lúridas
Aventuras do amor mediúnico e miaugente...
So I came
- from the dark bull-like tower
fantomática
Que à noite bimbalha bimbalalões de badaladas
Nos bem-bons da morte e ruge menstruosamente sádica
A sua sede de amor; so I came
De Menaipa para Forox, do rio ao mar - e onde
Um dia assassinei um cadáver aceso
Velado pelas seis bocas, pelos doze olhos, pelos centevinte dedos espalmados
Dos primeiros padres do mundo; so I came
For everlong that everlast - e deixa-me cantá-lo
A voz morna da retardosa rosa
Mornful and Beátrix
Obstétrix
Poésia.
Dost thou remember, dark love
Made in London, celua, celua nostra
Mais linda que mare nostrum?
quando early morn'
Eu vinha impressentido, like the shadow of a cloud
Crepitante ainda nos aromas emolientes de Christ Church meadows
Frio como uma coluna dos cloisters de Magdalen
Queimar-me à luz translúcida de Chelsea?
Fear love...
ô brisa do Tâmisa, ô ponte de Waterloo, ô
Roofs of Chelsea, ô proctors, ô preposterous
Symbols of my eagerness!
- terror no espaço!
- silêncio nos graveyards!
- fome dos braços teus!
Só Deus me escuta andar...
- ando sobre o coração de Deus
Em meio à flora gótica... step, step along
Along the High... "I don't fear anything
But the ghost of Oscar Wilde..." …ô darlingest
I feared... A ESTAÇÃO DE TRENS... I had to post-pone
All my souvenirs! there was always a bowler-hat
Or a POLICEMAN around, a streched one, a mighty
Goya, looking sort of put upon, cuja passada de cautchu
Era para mim como o bater do coração do silêncio (I usedTo eat all the chocolates from the one-penny-machine
Just to look natural; it seemed to me que não era eu
Any more, era Jack the Ripper being hunted) e suddenly
Tudo ficava restful and worm... - o sííííííííí Lvo da Locomotiva - leitmotiv - locomovendo-se
Through the Ballad of READING Gaol até a vísão de
PADDINGTON (quem foste tu tão grande
Para alevantares aos amanhecentes céus de amor
Os nervos de aço de Vercingetórix?). Eu olharia risonho
A Rosa-dos-Ventos. S. W. Loeste! no dédalo
Se acalentaria uma loenda de amigo: "I wish, I wishI were asleep". Quoth I: - Ô squire
Please, à Estrada do Rei, na Casa do Pequeno Cisne
Room twenty four! ô squire, quick, before
My heart turns to whatever whatsoever sore!
Há um grande aluamento de microerosíferos
Em mim! ô squire, art thou in love? dost thou
Believe in pregnancy, kindly tell me? ô
Squire, quick, before alva turns to electra
For ever, ever more! give thy horses
Gasoline galore, but do take me to my maid
Minha garota - Lenore!
Quoth the driver: - Right you are, sir.
*
O roofs of Chelsea!
Encantados roofs, multicolores, briques, bridges, brumas
Da aurora em Chelsea! ô melancholy!
"I wish, I wish I were asleep..." but the morning
Rises, o perfume da madrugada em Londres
Makes me fluid... darling, darling, acorda, escuta
Amanheceu, não durmas... o bálsamo do sono
Fechou-te as pálpebras de azul... Victoria & Albert resplende
Para o teu despertar; ô darling, vem amar
À luz de Chelsea! não ouves o rouxinol cantar em Central Park?
Não ouves resvalar no rio, sob os chorões, o leve batel
Que Bilac deitou à correnteza para eu te passear? não sentes
O vento brando e macio nos mahoganies? the leaves of brown
Came thumbling down, remember?
"Escrevi dez canções...
... escrevi um soneto...
... escrevi uma elegia..."
Ô darlíng, acorda, give me thy eyes of brown, vamos fugir
Para a Inglaterra?
"... escrevi um soneto...
... escrevi uma carta..."
Ô darling, vamos fugir para a Inglaterra?
..."que irão pensar
Os quatro cavaleiros do Apocalipse..."
"... escrevi uma ode..."
Ô darling!
Ô PAVEMENTS!
Ô roofs of Chelsea!
Encantados roofs, noble pavements, cheerful pubs, delicatessen
Crumpets, a glass of bitter, cap and gown... - don't cry, don't cry!
Nothing is lost, I'll come again, next week, I promise thee...
Be still, don't cry...
... don't cry
... don't cry
RESOUND
Ye pavements!
- até que a morte nos separe
ó brisas do Tâmisa, farfalhai!
Ó telhados de Chelsea,
amanhecei!



Londres, 1939
Vinícius de Moraes

24 de abril de 2008

fracturante

As duas almas em guerra. As dicotomias. O corpo partido pelo meio. O coração também. Um pé de cada lado da linha. O equilíbrio precário. A rosa e o espinho. O claro e o escuro.
Há forçosamente um lado mais forte, o que vencerá no final. Saber qual pode ser o trabalho da vida, à falta de melhor.
Noite ou dia, solidão ou multidão, amor ou ideais, silêncio ou entusiasmo, punho erguido ou mãos nos bolsos. O tempo o dirá.

Liberté, Paul Eluard

Sur mes cahiers d'écolier
Sur mon pupitre et les arbres
Sur le sable sur la neige
J'écris ton nom
Sur toutes les pages lues
Sur toutes les pages blanches
Pierre sang papier ou cendre
J'écris ton nom
Sur les images dorées
Sur les armes des guerriers
Sur la couronne des rois
J'écris ton nom
Sur la jungle et le désert
Sur les nids sur les genêts
Sur l'écho de mon enfance
J'écris ton nom
Sur les merveilles des nuits
Sur le pain blanc des journées
Sur les saisons fiancées
J'écris ton nom
Sur tous mes chiffons d'azur
Sur l'étang soleil moisi
Sur le lac lune vivante
J'écris ton nom
Sur les champs sur l'horizon
Sur les ailes des oiseaux
Et sur le moulin des ombres
J'écris ton nom
Sur chaque bouffée d'aurore
Sur la mer sur les bateaux
Sur la montagne démente
J'écris ton nom
Sur la mousse des nuages
Sur les sueurs de l'orage
Sur la pluie épaisse et fade
J'écris ton nom
Sur la vitre des surprises
Sur les lèvres attentives
Bien au-dessus du silence
J'écris ton nom
Sur mes refuges détruits
Sur mes phares écroulés
Sur les murs de mon ennui
J'écris ton nom
Sur l'absence sans désirs
Sur la solitude nue
Sur les marches de la mort
J'écris ton nom
Sur la santé revenue
Sur le risque disparu
Sur l'espoir sans souvenir
J'écris ton nom
Et par le pouvoir d'un mot
Je recommence ma vie
Je suis né pour te connaître
Pour te nommer
Liberté

23 de abril de 2008

abril, 1974

Nasci numa família de gente de trabalho. As vivências que me foram sendo contadas e as que me vi forçada a partilhar deram-me um certo tipo de consciência e visão do social que nunca me abandonaram.
O 25 de Abril de 1974 apanhou-me com 3 anos e meio. Tenho a sorte de não ter conhecido ou sentido na pele o antigo regime, a pide, o medo, as pesadas botas que pisavam pescoços e punhos cerrados, mas, por outro lado, acompanhei os meus pais nas lutas sindicais, nas greves, nos comícios, nas jornadas de trabalho, na construção das festas do Avante!, da Amizade, na distribuição de parques infantis feitos nas horas mortas dos metalúrgicos, nos bailes ao som dos Vermelhos, nas sessões de esclarecimento. Empunhei bandeiras, gritei de punho no ar exigindo o salário que não pagavam aos meus pais, chorei de raiva e de tristeza quando vi a polícia carregar sobre quem se manifestava, onde se incluíam os meus pais e seus camaradas, encurralando-os como animais.
O 25 de Abril está no meu imaginário, tanto como na minha consciência política, social e humana. Está nas primeiras canções que cantei, nos primeiros poetas por quem me apaixonei, nas primeiras festas onde cerrei os dentes e o punho e gritei que fascismo nunca mais. Está nas paredes do meu quarto de adolescente onde colava posters do Che Guevara e do menino da metralhadora em vez dos ícones pop da época. Está no Kuffieh que usei ao pescoço no inverno e à cintura no verão durante anos. Está na estante da sala dos meus pais onde imperava o vermelho das lombadas dos livros de Lénine, de Gorki, de Marx, de Álvaro Cunhal, na foice-e-martelo que desenhava na mala de cabedal que usava na escola.
O 25 de Abril, com tudo o que nos trouxe, está gravado no padrão deste pano de fundo que me forma.
34 anos passados, Abril não se cumpriu, mas não ficou por cumprir. Por nossa responsabilidade, por culpa do nosso comodismo e facilitismo, resta-nos a ilusão de que somos livres, porém as ilusões não nos fazem viver só por si mas sim como impulsionadoras para uma melhor e maior realidade.
Pelo sonho é que vamos. A nossa realidade, todavia, é bem diferente do que a sonhámos. Assinalar o 25 de Abril é agora um ritual em que se pretende perpetuar uma memória, como se tivéssemos de olhar para uma fotografia para recordarmos a cara da pessoa que amámos, é um ritual mais do que o afirmar de uma realidade, mais do que um bater o pé à direita. Dizia o poeta que as portas que Abril abriu nunca mais ninguém as fecha. Digo eu que se referia a sabermos que é possível lutar e vencer, mais do que à conquista em si mesma.
Mas digo também que nada está irremediavelmente perdido enquanto houver pessoas que mantêm acesa a chama da vontade de um mundo mais justo.

22 de abril de 2008

depois

Eu não acredito em bruxas, apesar de ter uma data delas, mas gosto da estética e da própria ideia.
Não acredito em fadas, mas gosto das asas da leveza.
Não acredito em dragões, mas gosto do porte e do poder.
Não acredito em cavalos alados nem em centauros, mas gosto da sensibilidade de uns e da virilidade de outros.
Não acredito em deus nenhum nem gosto do suposto conforto que oferecem.
Também não acredito em sonhos, ou melhor, não acredito que possam ser premonitórios. Apesar de a Flor ter sonhado com a morte do Pratas, pouco tempo antes de sabermos que o iríamos perder.
Todavia, há sonhos aos quais não posso fugir. De tal modo que já algumas decisões na minha vida forma tomadas na angústia da ressaca dos mesmos. Como quando matei personagens. Como quando deixei de confiar em alguém. Como quando o seu ambiente me ensombra dias seguidos.
Hoje tive um desses. Só não o conto aqui.

"Só". Não do livro mais triste que há em Portugal. Do Jorge Palma. De mim também.


o Che e a minha amiga Rosa


Também era Abril, nesse ano, mas um Abril diferente, num ano em que as estações ainda se cumpriam, e uma série de outras coisas também.

É de sorriso nos lábios que me diz: "Não passas de uma mulher soturna. Só teoria. Em que momento te esgueiraste de um concerto, de uma festa, de um bar para entrares no carro do homem que mais te agradou e te perderes nos apelos dos sentidos?"

Ainda tentei uma qualquer interjeição de indignação, mas ela atalhou: "Não, nem digas nada. Mesmo que o tenhas feito, de certeza que te puseste logo para ali a questionar tudo, a dramatizar, de certeza que o pobre há-de ter feito um gesto menos correcto, dito qualquer coisa fora do lugar. Olha, eu cá, não me dou a esses luxos. Vou. E indo, deixo-me ir. Percebes? Eu sei lá se algum dia hei-de querer mais do que isto. Nem tu sabes, afinal. Mas olha, foi de ti que me lembrei, eras tu quem deveria ter estado por cima dele, naquele carro apertado. Eras tu que te devias ter vindo, sem vizinhos que te controlassem os gemidos e os gritos. Eras tu que devias ter tido outra vez 20 anos, ou 30, ou 17. Eras tu que devias ter-lhe puxado a camisola, amarrotando-a nas tuas mãos. Eras tu que irias gostar dela."

Eu tenho lá paciência para ouvir as suas tangas. Espetei-lhe o dedo do meio em frente aos olhos, dei meia volta e fui ao supermercado, que já me faltam cebolas lá em casa.